Hoje na aula de Ballet, Dona Tereza fez a coisa mais maluca
de todas: Ela falou que tínhamos que interpretar o Hino Nacional. Isabelle
perguntou se ela queria escrita ou na fala. Dona Tereza torceu o nariz e
perguntou de volta, “você é brasileira?”, ela me olhou em pânico como se eu
soubesse a resposta. “É uma interpretação do que você é. Você é brasileira. A
dança é o que você é, uma extensão do seu corpo, do seu pensando. A música
traduz o que você pensa, a dança mostra o que você sente. Dança, brasileira.”
Voltei para casa pensativa. Com tanta dança legal... Tinha logo que ser o Hino
Nacional?
Às vezes fico sentada perto da barra de metal pensando em
como isso tudo surgiu. Penso como um homem deve ter pegado um bastão e sem querer
bateu em uma pedra. E bateu de novo. E de novo. Mais uma vez. Até que formasse
um som que acalmasse. Ou um som que excitasse. Que o fizesse sentir qualquer
coisa, que o fizesse chamar atenção.
Ai depois, me vem uma imagem de uma igreja e uma pessoa vagamente
balançando de um lado para o outro, escutando a letra e a melodia. Deixando
tomar contar. Uma relação meio de posse, de entrega.
Ai depois veio Mozart, certo? Quer dizer um compositor
livre. E mesmo que estivesse só compondo, aguçou dento de mim um desejo de
tornar a peça dele uma coisa real. Da primeira vez que Dona Tereza tocou para
nos aquecermos na borboletinha, era tamanha delicadeza com intensidade, que eu
já me sentia livre. Eu já me sentia parte da música. Um só. Um corpo, um
movimento, uma música, uma necessidade.
Quer dizer, fazer um samba de salão com os movimentos tão
precisos que ela nos havia ensinado não seria mais fácil do que o Hino
Nacional?
Eu estava com bastante medo. Estava com medo de interpretar
o Hino errado. Ai pensei em como ninguém tinha ideia do que fazer. Pensei em
como as pessoas sempre tiveram medo de se expor, e um dia veio alguém corajoso
o suficiente por todos nós, e foi para o meio do salão tentar acompanhar a
batida da música. Ele fechava os olhos para que ninguém o olhasse. Quando
abriu, percebeu que alguém observava e de repente, não sentiu mais medo do que
os outros pensavam. Foi um sentimento quente, queimava tudo mesmo, deixava seu
rosto vermelho. A cada passo mais quente. Até que estendeu a mão para ela. Ela
também tinha medo, ele podia sentir. Mas o sorrisinho no canto da boca
denunciou. E tudo se tornou mais quente quanto ela segurou a mão dele e o
deixou liderar ao som de “Twist and Shout.”
Ai penso naquela menina de 17 anos, que já era feita de
coragem. Ela foi pro meio do salão também, com aquela blusa que cobria até a
faixa do abdômen e uma calça que eu conseguia colocar meu tutu de balé na
bainha. Imagino como ela girava e sorria, tão relaxa, quando ouvia “dancing queen,
feel the beat from the tambourine.” Ou então como eu gostava de assistir papai,
todo palhaço, rebolando igual ao John Travolta quando ele colocava naquele CD
velho do Bee Gees, “Night Fever”. E logo era carregada para como meus amigos,
mesmo sem não ter vivido naquela época, fechavam os olhos e sentiam a mensagem
de “Is This Love” pelos seus braços que balançavam de um lado para o outro. E
como minha primeira peça contemporânea foi “Imagine”. Foi a mais difícil que
tive que fazer e quase estourei o joelho. Mas foi a mais bonita, e lembrei que
não tinha mais medo de nenhuma depois que tinha conseguido fazer aquela.
Lembrei, também, de como era fácil me soltar quando ouvia
“Girls Just Wanna Have Fun” durante nosso aquecimento. No dia em que tivemos
que dançar “Thriller”, entendi que não era só de alegria, a delicadeza de que a
dança era feita. Era de precisão, do medo de errar. Era de pensar que se eu fizesse
a pirueta e caísse no pé errado, iria distender meu tornozelo e ai acabava para
mim. Eu fiquei com medo de novo. E depois, confiante. Porque a raiva com que
Fred Mercury cantava em “Another One Bites The Dust” me colocou completamente
fora da minha zona de conforto. Quem olhava a coreografia, podia ter certeza
que eu odiava Cadu, meu parceiro, mas não. A dança não estava só nos nossos
movimentos precisos, estava estampada no meu rosto e como eu franzia minha
testa quando ele gritava “How you think I’m gonna get along without you when
you’re gone?” Cadu foi o meu primeiro amor. Foi o primeiro que me puxou no
meio do salão e recebeu o meu sorrisinho de canto de boca enquanto,
desengonçadamente, tentávamos dançar “I Just Called To Say I Love You”.
Dai lembrei da energia que estava envolvida da primeira vez
que dançamos, todo o corpo de dança, “Hit Me Baby One More Time”. Quer dizer,
claro que tínhamos dançado juntos antes, mas dessa vez foi surreal. Tinha
acabado de passar pelo meu primeiro amor e em cada movimento meu deixava um
pouco da minha frustação. Isabelle não. Ela estava tão apaixonada por Pedro,
que ela sorria nas mesmas frases que eu franzia a testa. Como né? Comecei a
entender mais meu corpo quando todos os meninos ficavam me olhando dançar
“Genie In A Bottle”.
Até agora lembro quando fizemos “El Tango de Roxanne”. Mais
uma vez sentia todos os meninos olharem para mim, Lucas principalmente. E eu
ficava bem nervosa depois que terminamos. Parecia que tinha perdido a
habilidade de dançar. Parecia que tinha perdido minha identidade e agora eu era
só a número 17 que ficava atrás para fazer volume, enquanto tinha alguém
cobrindo o meu Pas de Deux.
Ainda assim não entendia a tarefa. Então vasculhei minha
memória por tal identidade. E cai em um carnaval, onde a coisa que eu mais gostava
de fazer era esperar a hora da coreografia de “A Nova Loira do Tchan.” Ou então
quando eles tocavam aquele samba bem antigo, tipo “Aquele Abraço”, que fizemos
uma coreografia bem animada.
Lembro de como a expressão muda, a alma fica leve e o recado
está dado. Quer dizer, eu não preciso falar nada. Não é maluco, isso? A cada
batida do tambor, a cada toque do birimbau, a cada nota clássica que tocava...
É tão difícil de explicar. É como receber o toque de quem se ama, quando se
está dormindo: você arrepia, como se alguma coisa dentro de você acordasse ao
sentir o toque. E de repente dá vontade de ouvir uma música no meio da rua e
seguir os passos da batida, como se você estivesse em um videoclipe. Da vontade
de imitar precisão dos movimentos, que podem parecer bagunçados ou que não
foram planejados, mas que só nós, dançarinos, sabemos o quanto de equilibro e
de concentração leva para fazê-los. De como para mim, momentaneamente, pode ser
apenas uma forma de liberar minhas frustrações, ou de realmente encontrar quem
eu sou, mas para quem está assistindo é uma arte. Vai do ponto de vista de cada
um. É o que desperta a vontade de dançar, a vontade de ser tão precisa e tão
deliciada, e tão agressiva e tão simpática, como quem está dançado.
Dai não me aguentei. Levantei, sem completar meu
aquecimento, dei play no iPod e alguma coisa despertou dentro de mim. Era como
se eu estivesse sozinha. Sozinha não, eu e o meu reflexo. Ou eu e quem eu quero
realmente ser. E ela era linda. Ela era pura juventude revestida em dor. Um
salto tão preciso, mas tão cheio de dúvidas. Um rodopio certeiro e continuo,
mas sem saber onde iria parar. Era a junção de tudo que eu havia aprendido, era
quem eu realmente era. Mas eu não era. Eu era medo de errar. Eu era medo de
parecer confiante demais. Eu era medo de Tereza falar que eu não era boa o
suficiente.
Então já que já tinha me entregado, me entreguei mais ainda.
Ai, aos poucos os reflexos de todos apareciam atrás de mim. Eu já não me
lembrava de nenhum movimento que tinha feito. Cada um me olhando, me
analisando. Tantas expressões diferentes que não sabia realmente, no final,
quem eu era. Olhavam-me desconfiantes. Abismados. Encantados. Invejosos.
Diferenciava para cada um. Mas todos só me olharam, no final, definitivamente,
como se eu fosse arte.

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